Quem não madruga todos os dias 20 de julho
em Juazeiro do Norte, no Cariri cearense, perde a chance de experimentar
a fé de uma nação de romeiros. Há 85 anos, desde o “encantamento” do
padre Cícero Romão Batista, milhares de devotos e pagadores de promessas
voltam à “terra santa” para rezar, pedir e agradecer ao sacerdote e
líder político, falecido em 1934.
Ontem, o Largo do Socorro - em frente à capela que tem o
mesmo nome e onde está o túmulo de Padre Cícero -, ficou pequeno para
milhares de fiéis do sacerdote. Era madrugada ainda, quase quatro horas
de um começo de dia frio, quando os romeiros começaram a se achegar para
a principal missa em intenção da “alma” do finado mais concorrido do
Nordeste.
Dom Gilberto Pastana, bispo da diocese do Crato, fez as
honras da celebração ao lado de dom Rosalvo Cordeiro, auxiliar da
Arquidiose de Fortaleza e na presença de vários padres. Aqui, em
Juazeiro do Norte, padre Cícero continua sendo maior que a igreja
católica. É o finca pé dos romeiros que não arredam da santidade popular
do personagem. E não interessa para eles se o Vaticano ainda arrasta
pendengas contra o “padim”.
Os fervorosos do padre respeitam, pela ordem, o Coração
Sagrado de Jesus Cristo, a Virgem Maria e, depois, Cícero. Queremos
rezar para sua santificação”, fraseou dom Gilberto, um paraense nomeado
em 2016 pelo papa Francisco para pastorear no Cariri.
Padre Cícero, narrado no sermão do bispo, é o “pavio
que ainda fumega e não se apagará”. Verdade. Oitenta e cinco anos
depois, uma multidão de crentes ainda busca pela permanência do
presbítero que também foi o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte
1911).
Ancorado no evangelho que contou sobre o Êxodos, dom
Gilberto Pastanha, atualizou a narrativa. Pregou que o “povo de Deus”,
ali encarnados nos romeiros, nos pagadores de promessas e em outros
peregrinos “não podem se acomodar diante da morte, da escravidão”.
E foi mais além. “Nós não podemos apoiar leis que
matam, que favoreçam à morte. E não pensem sozinhos, pensem sempre
comunitariamente”, aconselhou dom Gilberto no Largo da Capela de Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro.
No Êxodos, o povo hebreu se junta, se liberta do autoritarismo de um mandatário do Egito e refundam a vida num outro País.
PELA PERNA QUE SE SALVOU
A permanência de padre Cícero no imaginário dos
romeiros tem suas razões. Mesmo que sua morte tenha acontecido há 85
anos, quem peregrina de vários cantos do Brasil para Juazeiro do Norte
traz na bagagem a devoção passada por avós, pais ou vizinhos de comunidades.
Predominantemente, o traço da fé é nordestino. De
Maxaranguape, no Rio Grande do Norte, veio Deise Pacheco, 30 e poucos
anos. Foi a avó, Adélia Francisca da Silva, 87, que a colocou no caminho
para Juazeiro do Norte.
Devota do “padim Ciço”, dona Adélia fez promessa pra
neta pagar. Foi quando Deise se acidentou gravemente no trabalho,
queimando uma das pernas na fábrica de detergente.
A idade da avó não a deixa mais visitar a terra onde
ainda “vive o padre”. Ficou para Deise. Pela segunda vez, veio agradecer
pela perna que não perdeu. Vestiu batina preta e assistiu à missa às 6
da manhã. “Foi a promessa, vou deixar aqui na sala dos milagres”, conta.
DE PAI PARA FILHO
“Meu pai viu o padre Cícero, falava com ele”,
orgulha-se José Raimundo dos Santos, 71. Ministro da Eucaristia e da
Irmandade do Santíssimo, Zé Raimundo não esquece do que viveu ouvindo em
casa, em Juazeiro do Norte.
“Ô, meu filho, o padre Cícero disse que o Coração
Sagrado de Jesus cuidasse dos romeiros”, repetia, segundo seu Raimundo,
Pedro Joaquim dos Santos.
Foi a tia Maria Vieira quem devotou Maristela Sena
Dias, 59, a padre Cícero. Com a visita do último sábado, já passava das
80 viagens a Juazeiro.
Prefeita de Piranhas, no agreste alagoano, Maristela
Sena passou a trazer os devotos do padre em caravanas anuais. Desta vez,
de três ônibus, desembarcaram 150 romeiros para as celebrações pela
travessia do sacerdote.
E assim, os romeiros, devotos e pagadores de promessas
seguem o que padre Cícero teria dito e dom Gilberto Pastana reforçado
este ano. “A presença de vocês aqui tem importância. Porque aquilo vocês
ouviram aqui, irão contar lá aos familiares, aos amigos, na volta para
casa”, perpetua o bispo da diocese do Crato.
SINCRETISMO NA ENTRADA DO SOCORRO
No átrio da Capela do Socorro, passagem para tumba de
padre Cícero, um encontro inusitado. Após a missa de 85 anos de saudades
do religioso católico, um agrupamento de índios Pankararus, vindos de
Pernambuco, e penitentes de São Gonçalo, de Santa Brigida da Bahia, se
permitiram juntar as rezas e os rituais.
Primeiro numa dança de São Gonçalo. Homens e mulheres,
maduros e idosos, vestidos de branco e ao som da rabeca, viola e
pandeiro, entrançavam jornadas de passos e reverências à imagem de padre
Cícero e à memória de Mãe Dodô. Uma beata, falecida, herdeira dos
ensinamentos do “padim”.
Depois, os índios. Vestidos de cordas de sisal dos pés à
cabeças. Caboclos com São Jorge estampados nas costas, cocás, maracás e
ladainhas que misturaram cantos indígenas a Ave Maria e Pai Nosso.
E no final, uma procissão dos dois grupos de devotos
pelas ruas do Centro Histórico de Juazeiro do Norte. Da Capela do
Socorro à igreja de São Francisco.
O povo