Tudo começa no voto. Mas não para nele. A
instabilidade democrática hoje identificada em diferentes países tem
início em um dos pilares da própria democracia, que são as eleições.
Rompe, porém, as paredes da política. Diz respeito a leis, poder,
sociedade, comunicação, contradições. No fim, ser democrático significa
ter vínculos de convívio e tolerância em grupos diversos. E é nessa
perspectiva que há a fragilidade.
"Não podemos dizer que há uma crise na democracia.
Temos crise de alguns processos dentro do modelo democrático. A
democracia não é só o processo eleitoral, mas é a governança, a
consulta, a intermediação", resume o professor do Instituto de Ciência
Política (Ipol) da Universidade de Brasília (UnB), Aninho Irachande
Mucundramo. E um dos processos mais afetados, conforme ele, é o do
diálogo e da falta de relação direta entre eleitores e eleitos. Que
podem ser acentuados pela metodologia de proporcionalidade dos votos e
pela postura de gestores que, eleitos, esquecem que a vitória foi
produto de um processo democrático.
Uma situação paradoxal, onde o indivíduo eleito acaba
trabalhando contra os princípios da democracia. "Diversidade, oposição,
diálogo, tolerância. Podemos exemplificar começando com a maior potência
do mundo (EUA)", destaca o professor da UnB. No caso brasileiro, Aninho
ressalta que os diversos setores se manifestam e resistem quando
ameaçados, o que deixa clara a ainda prevalência da democracia. Mas
sobre essa reação prevalece também relação direta entre consciência
política e grau de consolidação das instituições públicas. "Nos países
onde essas características são mais baixas a ameaça é maior e a reação
menor", analisa.
Contra o processo democrático pode estar também a
economia. "Se percebeu, sendo verdade ou não, que nos últimos governos
do Brasil havia um posicionamento que geraria problemas a segmentos
econômicos mais avançados", afirma Aninho. Situação que pode ser
explicada pela teoria segundo a qual o Estado sempre está a serviço de
determinado grupo da sociedade.
O doutor em Estado Democrático do Direito, Alexandre
Bernardino Costa, lembra a importância do processo de voto como
potencial enfraquecedor da democracia. "Na Europa, inclusive, governos
autoritários chegaram ao poder por esse processo. Temos aí crises de
representação", descreve. Governos que fizeram com que os eleitores não
se sentissem representados pelos grupos políticos que estavam no poder.
"Seja por corrupção ou manipulação de votos", afirma.
E é depois que a eleição se conclui que outra parte do
ambiente democrático precisa ser efetivado. A alternância de poder, o
respeito às leis e o reconhecimento da legitimidade dos outros eleitos
também são fundamentais para fortalecer a democracia. "Muitas vezes o
presidente eleito considera apenas ele como a nova política e coloca o
restante como dentro da velha política. Quando na verdade todos têm a
legitimidade do voto", explica o cientista político e professor da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, Rodrigo Prando.
Ele detalha ainda que quem ocupa o poder tende a não se
desfazer dele, ferindo a necessidade de rotatividade do poder. E assim,
tornando-se autocrático. "Muitas vezes o desejo é de se manter no poder
e privilegiar a si ou o grupo do qual faz parte. Por isso é importante
dividir o poder em três. Um dos melhores mecanismos para prevenir que a
democracia se fragilize é a relação harmoniosa entre eles", detalha.
Nessa relação, quem cria as leis, não as executa. Quem as avalia é o
Judiciário, que não as faz e não tem poder de gestão. "O mecanismo parte
dessa ideia, de que cada poder serve de contrapeso e freio".
Aninho Mucudramo, professor da UnB, alerta que no
Brasil, diferente de outros países, o processo político-eleitoral não
permite prever o que vai acontecer na próxima eleição. E a perspectiva
não é positiva. O acirramento crescente da polaridade só teria, na
opinião do professor, duas soluções. "Governos de grandes estadistas.
Homens com certo altruísmo que saibam que a sociedade brasileira é maior
e plural. E é preciso trabalhar esse conjunto, entendendo que as
vitórias temporais não ajudam no processo de crescimento civilizatório",
comenta.
A outra solução é mais drástica, mas também inerente à
democracia. "É o extremo na cultura absoluta. Mergulharíamos numa crise
grave e da qual vamos emergir sacudindo a poeira e nos entendendo
iguais", analisa Aninho. As duas opções precisariam de tempo, pelos
menos dois mandatos. O professor finaliza frisando que a construção
democrática é demorada. No Brasil, são pouco mais de três décadas. A
destruição, entretanto, é rápida. E, para os especialistas, já começou.
No Brasil, nosso modelo de representação exibe a falta
de diálogo", resume o professor Aninho. Esse distanciamento entre
eleitor e eleito se explicaria por doisO povo