32 comunidades de descendentes de Quilombos aguardam demarcação no Ceará; alguns processos já duram 14 anos

Blog do  Amaury Alencar
Concei

Com quatro processos abertos desde 2005, nenhuma comunidade tradicional do Estado ainda recebeu títulos definitivos das terras ocupadas por seus antepassados
 
Após anos de escravidão e torturas, cinco famílias negras conseguiram fugir da fazenda do coronel Tito Alves de Lima, próxima de Coreaú, rumo à Serra da Meruoca. No sopé das montanhas, encontraram refúgio tranquilo, distante dos capitães-do-mato, de terras férteis e por onde passava um riacho. Ali, as famílias fundariam a que mais tarde seria batizada Vila Timbaúba, onde ex-escravos eram bem-vindos para ser livres e manter vivas suas tradições.

O êxodo do grupo, no século XIX, conta a origem de Timbaúba, uma das 32 comunidades quilombolas atualmente em processo de regularização junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Ceará. Com quatro desses processos abertos desde 2005, nenhuma comunidade do Estado ainda recebeu títulos definitivos das terras ocupadas pelos antepassados. Mais de 150 anos depois, as cinco famílias de Timbaúba viraram 142 e ainda mantêm forte vínculo com a história de resistência.

A permanência  dos ex-escravos na região não foi fácil: mesmo após a Lei Áurea, o governo federal ordenou a construção de um açude na região, ameaçando a ocupação da comunidade. "Quando as famílias apareceram, a terra não tinha dono, aí cada qual arrumou um pedacinho e foram levando, até chegar essa lei pesada para tomar as terras", conta Dona Dadá, uma das moradoras, em relato publicado em um volume da coleção Terras de Quilombos, do Incra.

Nesta quarta-feira, 20, comemora-se o Dia da Consciência Negra, data que marca a morte, em 1695, de Zumbi, líder dos Palmares, o maior dos quilombos brasileiros.
Territórios quilombolas no Ceará
Territórios quilombolas no Ceará

"Nossa história foi afogada [na construção do açude] junto com a Fazenda do Tito. Lá tinha o tronco onde amarrava os negros, o lugar onde eles puniam os nossos parentes. A minha avó contava que os negros eram amarrados nesse tronco. Ainda tem resquícios dele lá, quando o açude baixa dá para ver", diz Dona Dadá. A comunidade já é autodefinida como quilombola desde 2006, mas aguarda portaria de reconhecimento do Incra.


Segundo dados do Incra de maio deste ano, estão abertos no Brasil 1.747 processos de regularização de territórios quilombolas. A maioria, 1.005 (57,5%), se concentram no Nordeste, sobretudo no Maranhão (399) e na Bahia (319). O processo tem seis etapas, da autodefinição das comunidades até a concessão de título imprescritível das terras aos quilombolas.

No Ceará, apesar autodefinição de cerca de 70 comunidades tradicionais, nenhuma ainda recebeu o título das terras e 32 têm processos de demarcação em andamento junto ao Incra, segundo relatórios de janeiro de 2019. O mais antigo, da comunidade de Água Preta, no município de Tururu, foi aberto em 2005 e se encontra na segunda etapa de regulação, da elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).
 
 
Assim como as 104 famílias de Água Preta, outras sete comunidades – incluindo a de Timbaúba – se encontram na mesma etapa, ainda segundo dados do Incra de janeiro deste ano. Além disso, apenas duas tiveram portaria de reconhecimento publicada no Diário Oficial da União (DOU) e outras duas decreto de desapropriações publicado no DOU. Na maioria dos casos, as comunidades vivem hoje em território muito menor do que ocupavam historicamente.

"Antigamente, a comunidade Timbaúba vivia em uma área bem maior que aquela ocupada hoje, razão pela qual, ao longo do tempo, muitos foram levados a emigrar em busca de melhores condições de trabalho e moradia", diz relatório do Incra, que aponta ainda que, por conta do reduzido espaço, a comunidade é obrigada a fazer reuso intenso da terra para pastos, o que leva ao esgotamento do solo. “O que compromete severamente a qualidade de vida”.

Federação protesta contra atraso nas demarcações

Segundo movimentos quilombolas, a definição de terras tradicionais ganhou novo revés em janeiro deste ano, após o governo Jair Bolsonaro transferir as ações de demarcação para o Ministério da Agricultura. Em janeiro, logo após a posse do presidente, parte significativa dos processos – que já vinham em ritmo lento desde o governo Dilma Rousseff (PT) – foram suspensos temporariamente.
No início deste mês, a Federação Nacional das Associações Quilombolas (Fenaq) protocolou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) cobrando danos morais do governo pela demora na demarcação de terras. Segundo a entidade, apenas cerca de 200 das quase cinco mil comunidades reconhecidas pelo País são demarcadas com titularidade de terra.
 
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“Os remanescentes quilombolas, ainda hoje, vivem em condições precárias devido à falta de regularização das terras que habitam, estando, por isso, suscetíveis a toda sorte de ameaças e violências", diz a ação, assinada pelo advogado Humberto Adami. "A falta de regularização implica na negação de diversos direitos fundamentais, prejudicando as condições de desenvolvimento de sua cultura, tradições, não conseguem moradia digna”, destaca.

O POVO questionou o Incra sobre a demora na demarcação de terras no Estado. E-mails enviados para as sedes do órgão em Brasília e em Fortaleza, no entanto, não foram respondidos até a publicação desta reportagem.
Comunidade quilombola de Serra dos Chagas, em Salitre
Comunidade quilombola de Serra dos Chagas, em Salitre   
 
 
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