Levantamento está sendo realizado pelo Ministério
Público Federal (MPF) e será compilado na Plataforma de Territórios
Tradicionais. Foto: Antônio Rodrigues
O
Ceará é fruto da religiosidade dos povos de terreiro, na região do
Cariri, e das famílias que tiram sustento da atividade extrativista no
Araripe. É também composto de histórias dos ribeirinhos que resistem por
gerações às margens do rio Quixeramobim e dos pescadores que negam a
pesca predatória na região Norte. O fato é que as comunidades
tradicionais são parte da história do estado e, ainda hoje, se mantêm
firmes diante dos conflitos que carregam.
Um
levantamento realizado pelo Ministério Público Federal (MPF) aponta que
14.655 famílias se declaram “povos tradicionais” no Ceará. O balanço
está sendo feito a partir do cruzamento de dados do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra), da Fundação Nacional do Índio
(Funai), do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Cadastro
Único.
Numa
série de reportagens especiais, apresentaremos quatro dos sete povos
incluídos no levantamento do MPF: extrativistas, pescadores artesanais,
povos de terreiros e ribeirinhos.
Consumido
no popular baião-de-dois ou para a produção de óleo, tido como
medicinal, o pequi está presente em quase todas as feiras do Cariri
cearense. O fruto nativo da Chapada do Araripe, símbolo culinário da
região, também é a principal fonte de renda para comunidades de
extrativistas, principalmente nas cidades de Crato, Nova Olinda,
Barbalha e Jardim. No limite entre os dois últimos está a Vila Barreiro
Novo, formada às margens da CE-060, no território da Floresta Nacional
(Flona) do Araripe.
Com
aproximadamente 44 casas, de taipa e alvenaria, a comunidade de
catadores foi se formando ao longo dos anos pela necessidade de renda.
De janeiro a março, período que marca a safra do pequi, mais de 20
famílias se mudam para o meio da floresta para colher o fruto. A maioria
vem do Sítio Cacimbas, no distrito de Novo Horizonte, em Jardim, que
fica a cerca de cinco quilômetros da Vila.
Fora da safra, catadores como Cícero Pedro da Cruz permanecem na comunidade utilizando a Vila como ponto de referência.
Há
20 anos ele trabalha como catador, atraído pelo crescimento das vendas
e, sobretudo, pela pavimentação da CE-060, ligando o Ceará a Pernambuco.
“O dinheiro da safra aplico todinho para passar a seca comendo. Compro
arroz, feijão. Se essa serra fosse ‘simbora’, o cara tinha que ir junto
com ela”, brinca.
Na Vila Barreiro Novo, entre
Jardim e Barbalha, no Ceará, comunidade se formou a partir do
extrativismo de pequi — Foto: Antônio Rodrigues
O
ICMBio identifica aproximadamente 150 comunidades
que têm como
atividade o extrativismo na Área de Proteção Ambiental da Chapada do
Araripe. Destas, a maioria – 100 – estão no território cearense. Ainda
assim, nenhuma delas entrou com pedido para conseguir o reconhecimento
legal, o que impede a criação da Reserva Extrativista (Resex) ou Reserva
de Desenvolvimento Sustentável (RSD).
“O
Estado não pode declarar. Aqui, na Chapada têm [comunidades], mas não
se reconhecem enquanto extrativistas. É o que a gente chama de
comunidades invisíveis. O nosso papel é ratificar o
autorreconhecimento”, explica o analista ambiental do órgão federal,
Paulo Maier Souza. O processo de criação de uma Resex começa,
obrigatoriamente, a partir de um pedido da própria comunidade, mas ela
precisa ter algumas características.
Ao
se auto-reconhecer, o extrativista se organiza em grupo, faz um abaixo
assinado e demanda os órgãos. O ICMBio realiza o estudo de comprovação,
mas, eventualmente, pode contratar alguma empresa para realizar os
estudos necessários no processo.
O
reconhecimento oficial dá acesso a uma série de políticas públicas,
como a garantia de que 30% do Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE), pelo Programa Nacional de Aquisição de Alimentos, seja
utilizado para a compra de alimentos da agricultura familiar. Os
extrativistas entram nessa categoria junto com silvicultores,
aquicultores, pescadores, indígenas, quilombolas e assentados da reforma
agrária.
No
caso da Vila Barreiro Novo, segundo o analista ambiental do ICMBio, o
autorreconhecimento esbarra no fato de que os moradores utilizam o local
de maneira esporádica durante o ano. “Acampam em período de colheita. É
uma característica comum da atividade de extrativismo. O trabalho
ocorre em período sazonal”, explica.
A
maioria dos extrativistas vive no Sítio Cacimbas, a cerca de cinco
quilômetros da Vila. A comunidade possui uma Unidade Básica de Saúde
(UBS), que conta com um médico duas vezes por semana. Hoje, o principal
problema é o abastecimento de água para algumas famílias. O recurso é
obtido por meio de um poço profundo e enviado a uma caixa d’água, porém
nem todas as casas têm acesso. “Só se for pagar um caminhão-pipa”,
explica o catador Zilmar Francisco dos Santos.
Na
Vila Barreiro Novo, onde os extrativistas se concentram, uma cisterna
precisa ser mantida com dinheiro dos próprios catadores.
O G1 tentou
contato com o Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Jardim para obter
esclarecimentos sobre a falta de abastecimento no Sítio Cacimbas, mas
não houve resposta até a publicação desta matéria.