A Câmara e o Senado pagam pensões
mensais de até R$ 35 mil a filhas solteiras de ex-parlamentares e
ex-servidores. Previsto numa lei sancionada por Juscelino Kubitschek em
março de 1958, o benefício atende até hoje 194 mulheres e custa, por
ano, R$ 30 milhões - o equivalente ao dinheiro necessário para construir
500 casas populares do Minha Casa Minha Vida. A norma foi derrubada em
1990, mas foi mantido o privilégio para quem já estava na folha de
pagamento.
Denúncias de pagamento indevido não
faltam. No mês passado, a Polícia Legislativa passou cinco dias no Rio
para investigar o estado civil de uma pensionista. A notificação partiu
do Tribunal de Contas da União (TCU), que apontou inconsistências no
registro da beneficiada a partir de cruzamentos de bases de dados.
Num relatório sobre a viagem, um agente
da Polícia Legislativa escreveu que, após uma "exaustiva" investigação,
descobriu que a mulher tinha um marido. A pensionista foi indiciada por
estelionato em inquérito sigiloso encaminhado ao Ministério Público
Federal.
Pelos critérios do Congresso, a pensão
deve ser paga até a filha se casar, ter uma união estável ou conseguir
um emprego público permanente. Mesmo quando completa 21 anos, a filha
solteira mantém o direito.
Uma das maiores pensões do Congresso é
paga à filha de um ex-analista do Senado. Desde 1989, ela ganha R$
35.858,94 por mês, em valores brutos. Outras 29 mulheres recebem, cada
uma, R$ 29.432,27 de pensão por serem dependentes de ex-servidores da
Casa. Todas estão incluídas na categoria "filha maior solteira" na folha
de pagamento.
Na relação de beneficiárias da Câmara
está a filha de um ex-deputado por São Paulo, que morreu em 1974, após
nove anos de atuação legislativa. Solteira no cadastro da Câmara, a
pensionista Helena Hirata mora há 49 anos em Paris e recebe R$ 16.881,50
por mês. Filósofa e pesquisadora, ela atua num centro de pesquisa da
capital francesa.
Ao Estado, a pesquisadora admitiu não
depender da pensão e ter outras fontes de renda, inclusive como
aposentada do centro de pesquisas francês. Disse, ainda, que o montante
era automaticamente repassado à mãe dela. "Ela faleceu em 2016 e desde
então a pensão fica na minha conta", afirmou Helena, de 73 anos.
É o mesmo valor da pensão que ganha a
filha de um ex-deputado federal do antigo Estado da Guanabara, unidade
da federação extinta há 44 anos. Empossado em 1967, o parlamentar morreu
três anos depois e a sua herdeira entrou no cadastro de pensionistas,
de onde nunca mais saiu.
Câmara e Senado dizem que dependem das pensionistas para atualizar cadastro
Tanto a Câmara quanto o Senado admitem
que dependem das próprias pensionistas para atualizar os cadastros. "O
Senado fiscaliza, anualmente, a condição de 'solteira' das pensionistas
por meio do recadastramento anual obrigatório que elas realizam, sob
risco de suspensão ou cancelamento da pensão", informou a Casa em nota. A
Câmara não respondeu ao pedido de esclarecimento.
A pensão para filhas solteiras não é
benefício exclusivo do Legislativo. Desembolsos também são feitos para
pensionistas da União e do Judiciário. Até 2014, a despesa total custava
R$ 2,2 bilhões, incluindo pensões civis e militares. O valor foi
levantado em auditoria recente feita pelo TCU.
Em 2016, a Corte de Contas apontou 19
mil pagamentos com suspeitas de serem indevidos para filhas solteiras
mapeadas em 121 órgãos da administração pública direta federal.
A fiscalização ocorreu porque o TCU foi
confrontado com denúncias de irregularidades na Câmara. As suspeitas
estavam tanto na outorga quanto na manutenção de pensões especiais a
filhas de ex-servidores e de ex-parlamentares.
O acórdão atacou pagamentos a filhas
solteiras que eram, ao mesmo tempo, beneficiárias e detentoras de
atividades remuneradas nos setores público e privado. O TCU entendeu que
a "dependência econômica" deveria ser comprovada para que os benefícios
fossem mantidos. Qualquer remuneração superior ao teto do INSS
representaria independência financeira e, portanto, no entendimento da
Corte, suspenderia a pensão.
A interpretação do TCU fez com que os
órgãos federais, inclusive o Congresso, suspendesse as pensões. Na
prática, porém, pouca coisa mudou. As beneficiárias passaram a pleitear a
manutenção das pensões no Supremo Tribunal Federal (STF) e foram
atendidas.
Em setembro de 2019, o ministro Edson
Fachin, do STF, suspendeu o acórdão do TCU e manteve a interpretação
original da lei. Ele decidiu que devem perder o benefício apenas as
pensionistas que casarem ou assumirem "cargo público permanente".
(Terra)