Porto Príncipe, Haiti - O
governo brasileiro foi formalmente denunciado à Comissão Interamericana
de Direitos Humanos (CIDH) por “violações sistemáticas à liberdade de
expressão, ataques à imprensa, e censura às liberdades artística e
cultural”. A denúncia ocorreu durante audiência oficial, na manhã desta
sexta-feira, 6, em Porto Príncipe, no Haiti.
A comitiva brasileira foi formada por
representantes da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo
(Abraji), do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, da
organização de direitos humanos Artigo 19, da Repórteres sem Fronteira e
do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC).
“As medidas para calar veículos de comunicação e
jornalistas, para censurar manifestações artísticas e culturais, para
calar movimentos sociais e extinguir espaços de participação social
partem diretamente do presidente da República, de seus filhos e de
outros membros do governo”, acusou Renata Mielli, coordenadora geral do
FNDC, já na abertura da audiência.
“Casos emblemáticos dessa pratica são os do jornalista
Glen Greenwald, do site Intercept Brasil, e de Patricia Campos Mello, da
Folha de S. Paulo, alvos de ameaças de morte, de difamação e todo tipo
de ataques. Mais recentemente, outra jornalista, Vera Magalhães, do
Estado de S. Paulo, entrou no foco dos ataques do presidente e sua
família”, apontou Renata.
A denúncia foi rebatida pela delegação do Estado
brasileiro, composta por Daniel Leão, representando o Ministério das
Relações Exteriores; Alexandre Magno, do Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos; Francisco Lima, da Empresa Brasil de
Comunicação (EBC); e Gisele Arcoverde, do Ministério da Justiça e da
Segurança Pública.
“No Brasil não existe censura”, garantiu Alexandre
Magno, em sua réplica às acusações. “0 governo federal não exerce
censura. A gente reafirma nosso compromisso com a mais ampla liberdade
de expressão da sociedade civil, aí incluída a imprensa. Não há nenhuma
iniciativa de censura por parte do governo”, frisou Magno.
Já Daniel Leão explicou que o fato de o Ministério
Público ter oferecido denúncia contra Glenn Greenwald, apesar de a
Polícia Federal não ter encontrado indícios de crime em seu trabalho
jornalístico, sinaliza a independência entre as instituições. “A
denúncia não foi recebida pela Justiça Federal, isso demonstra que as
instituições brasileiras atuam com autonomia e independência na
salvaguarda dos Direitos Humanos”, alegou.
Os integrantes da CIDH demonstraram preocupação com o
que está acontecendo no País , a começar pelo presidente e comissário
para Direitos Humanos do Brasil, Joel Hernández García. “A outorga deste
tema para esta audiência não ocorreu de maneira gratuita. Já estávamos
preocupados com o que vemos como ameaças ao trabalho de jornalistas no
brasil”, afirmou. “A mim me parece que o estado e a sociedade brasileira
valorizam a liberdade de expressão como a base de sua democracia. Como
também não tenho a menor dúvida que o Brasil há uma sólida instituição
democrática para salvaguardar esse direito. Por isso é muito importante
ouvir vocês hoje nessa audiência”.
Edson Lanza, relator para Liberdade de Expressão,
chamou atenção para a ausência de reconhecimento público do papel
fundamental do jornalismo pelo presidente da República e seus
comandados. “Não há como garantir a liberdade de imprensa se o
presidente está permanentemente criticando jornais e jornalistas e os
acusando de corrupção, entre outras coisas”, alertou. “A política de
proteção tem que estar aliada uma política de prevenção. Se não for
assim, expõe-se o jornalista à violência”.
Materialização das ameaças
A delegação brasileira que veio ao Haiti para denunciar
o governo Bolsonaro por suas ameaças à liberdade de expressão tomou
alguns cuidados para que o abstrato não predominasse em seu discurso.
Dada a importância da audiência e a enorme credibilidade que a CIDH tem
na comunidade internacional, a delegação optou por materializar as
ameaças que veio denunciar, numa estratégia de aproximar a Comissão da
realidade denunciada.
Para isso, exibiu no telão da audiência um vídeo com
diversos trechos de agressões verbais e gestuais do presidente Bolsonaro
a jornalistas no Brasil. O impacto só não foi maior porque o sistema de
vídeo do hotel onde está acontecendo a reunião demorou a carregar e o
tempo aqui é cronometrado. Mas o pouco exibido, com direito a imagens do
presidente dando “bananas” gestuais a jornalistas e perguntando a
outros por suas mães foi suficiente para arregalar os olhos de alguns
comissionários e provocar comentários entre eles.
Outra estratégia foi trazer até à Comissão o testemunho
presencial de vítimas diretas de ações do governo federal que a
comitiva classifica como censura e restrição da liberdade de expressão.
Foi este o caso da jornalista Helena Bertho Dias,
diretora de Redação da revista AzMina. Diante da Comissão, ela relatou o
episódio em que, após publicar uma reportagem sobre aborto seguro e
onde ele pode ser feito, foi atacada pela ministra da Mulher, Família e
Direitos Humanos, que acusou a publicação de fazer apologia ao crime e
incentivou seguidores a atacarem virtualmente o site.
“Não é de hoje que ser jornalista no Brasil é um risco.
Mas é novidade a existência de um governo que se dedica a atacar
diretamente jornalistas e veículos de imprensa. E é notável que, em um
país onde uma mulher é morta a cada quatro horas pelo simples fato de
ser mulher, nós mulheres jornalistas estejamos sendo alvos recorrentes
de ataque dos governos”, declarou, diante da Comissão.
Censura
Helena, a jornalista do AzMina, não foi a única
testemunha trazida pela delegação brasileira para denunciar o que sofreu
– e ainda sofre - por ações do governo Bolsonaro. Houve outra
testemunha que compareceu à CIDH, aqui no Haiti, com teor semelhante em
seu discurso, apenas mudando a área de atuação.
Sai o jornalismo, entra o audiovisual. A segunda
testemunha a se pronunciar na audiência do fórum internacional denunciou
a censura a projetos de séries para TV com temática LGBT+ promovida
pelo atual ocupante do Palácio do Planalto.
E sem cansar a paciência de vocês, caros leitores,
informo que essa segunda testemunha sou eu, o próprio repórter que
escreve esta matéria. Há imparcialidade possível nesse caso? Esta é uma
pergunta que não cala nem que calar. Mas arrisco que sim, e defendo essa
posição com unhas e dentes.
Por óbvio que fazer parte de uma delegação específica
implica uma série de limitações éticas de abordagens e comentários.
Respeito-as acima de tudo. E é por respeito a você, caro leitor, que
explícito minha situação, ao mesmo tempo em que deixo claro que são duas
as personas e elas não se misturam. O jornalista é o que vos fala; o
cineasta (censurado) é o que prestou depoimento à comissão.
O jornalista viajou a convite do FNDC
o Povo