Heyde ainda afirma que, desde o início da pandemia, tem percorrido diversas cidades do Ceará e de estados vizinhos para apresentar a iniciativa a prefeitos e secretários de educação. “Penso que é uma forma dos municípios auxiliarem os estudantes cegos a não ficarem prejudicados durante o ensino remoto. Infelizmente, nem todos os gestores têm a sensibilidade para entender a importância de uma ferramenta como essa na vida de quem tem a limitação visual. Nessas andanças, um prefeito chegou a me dizer que não iria investir no projeto porque ‘cego não dá voto’. Isso nos entristece, mas por outro lado, fico feliz quando outros falam que essa já foi a ferramenta mais inclusiva que já viram na área da educação”, comenta o desenvolvedor.
A plataforma já foi apresentada, inclusive, à Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, vinculada ao Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos (MDH), que não sinalizou intenção de investimento e pediu o envio da proposta ao Ministério da Educação.
Heyder também espera resposta da prefeitura de Fortaleza e de municípios do interior cearense. Para o desenvolvedor, a questão deveria ser tratada com mais agilidade pelo poder público. ”Escuto relatos de crianças e jovens com deficiência visual que estão sofrendo muito por estarem afastados, não da escola, mas do conhecimento. Os alunos que não têm deficiência, ainda que tenham dificuldades, recebem conteúdos e conseguem fazer suas atividades. As crianças que não enxergam não têm sequer essa possibilidade. A nossa proposta, com essa ferramenta, é suprir essa carência. Isso deveria ser pensado com urgência pelas gestões e por todas as escolas, públicas ou privadas, de um modo geral”, afirma.
Suporte técnico
Mestre em educação pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), a professora Sueli Farias, que esteve à frente da coordenação da célula de educação especial de Fortaleza entre 2012 e 2017, ressalta a necessidade das instituições de ensino disponibilizarem ferramentas tecnológicas para auxiliar estudantes com deficiência visual durante as aulas remotas. Ela acredita que, sem isso, não há condições mínimas de aprendizagem.
“Nesse contexto atual, onde não temos o contato físico do aluno com a escola, fica difícil a gente imaginar como é que está sendo para um aluno que tem baixa visão assistir às aulas por essas ferramentas que temos disponíveis hoje, como zoom e meet, sem o suporte necessário para se amparar nos conteúdos que estão sendo desenvolvidos remotamente”, enfatiza a professora .
Sueli ainda afirma que, além do suporte tecnológico, as escolas devem capacitar as equipes pedagógicas, planejar aulas com múltiplas estratégias de ensino e flexibilizar atividades letivas, de modo a minimizar as barreiras que a deficiência visual impõe no ensino remoto.
“Eu desisti”
Entre os muitos estudantes com deficiência visual que lidam com o desafio das aulas online durante a pandemia está Samara Ferreira, 21, de Juazeiro do Norte. Matriculada no terceiro ano do ensino médio, no curso de eletrotécnica do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), campus Juazeiro, ela contou ao O POVO que chegou a desistir dos estudos devido às dificuldades enfrentadas na rotina de ensino a distância.
"Era pra eu ter concluído o ensino médio no ano passado, mas quando começou a pandemia eu não estava conseguindo me adaptar às aulas online, e acabei desistindo, cancelei a matrícula”, lembra.
Depois de alguns meses sem contato, mesmo que virtual, com colegas e professores, ela resolveu tentar mais uma vez neste ano. “Voltei em fevereiro, mas as dificuldades continuam as mesmas, infelizmente. Vou levando, até onde der”.
Samara explica que, na rotina de estudos online, o maior desafio é a falta de acessibilidade dos conteúdos ministrados pelos docentes. “Os professores costumam passar muitas atividades pedindo resumos de filmes, mas nenhum vem com audiodescrição. Daí eu somente escuto e tento fazer o relato de forma improvisada, do jeito que posso”, conta.
A jovem ainda aponta que há pouca interação com os professores, o que dificulta sua participação durante a abordagem dos conteúdos. “Eu sinto falta de uma atenção maior. Eu sei que nesse período remoto, é mais difícil para eles [os professores] prestarem esse auxílio. Mas, às vezes, eles passam imagens nos slides e não descrevem. Eu tenho sempre que ficar lembrando, perguntando, o que chega a ser incômodo tanto para mim quanto para eles”.
A alguns meses de concluir uma das etapas mais importantes de sua vida, o ensino médio, Samara diz ter mais motivos para lamentar do que comemorar. “Eu sinto que eu só estou estudando para ter nota, para passar de ano, porque para aprender mesmo, não tô conseguindo pegar nada. Está sendo um período quase todo perdido”, diz a estudante.
Acompanhamento
No IFCE de Juazeiro, Samara é a única estudante com 100% da visão comprometida. Ela é acompanhada periodicamente pela pedagoga com formação em braille, Ivania Carvalho, que relata como a estudante vem sendo auxiliada pela instituição.
“Para melhor atendê-la, fizemos reuniões com ela para entender as suas dificuldades e como ajudá-la. Foi sugerido o aplicativo Readium para leitura dos e-books. Porém, Samara optou por outro aplicativo, o Qread, esse app faz leitura dos E-books e PDF 's em geral. Com base nos conteúdos que estão sendo trabalhados, principalmente em Biologia, foi elaborado um material tátil para ela poder realizar os exercícios do conteúdo de genética. Dentro do cronograma que foi estabelecido pela professora, ela tem aulas individuais e tira-dúvidas”, explica a profissional.
Sobre a desistência de Samara em 2020, Ivania lembra que a estudante recebeu orientações online para aprender a manusear as ferramentas do Google, como o classroom e o meet, mas admite que “infelizmente, mesmo com todos esses esforços, incluindo os da parte dela, não foi possível a aluna concluir com êxito o ano letivo”.
A brailista ainda explica que, no período de avaliações, Samara pode contar com o auxílio de uma servidora da instituição, que faz o papel de ledora para a aluna. “Durante todo o processo há o auxílio e acompanhamento necessários da coordenadoria do núcleo de acessibilidade do IFCE”, garante Ivania.
o Povo