Após a liberação dos recursos retroativos a maio de ajuda federal, municípios cearenses iniciam uma última rodada de discussão – seja internamente, seja com sindicatos – antes de enviar os projetos sobre o piso da enfermagem ao Legislativo.
Também buscam respostas junto ao Ministério da Saúde sobre detalhes da portaria de complementação, a fim de organizar informações e restabelecer os repasses para o exercício do próximo mês.
As prefeituras têm um mês para encaminhar a situação, a contar a partir do último dia 22, quando caiu o depósito da complementação.
Em Fortaleza, por exemplo, a proposta chegou à Câmara Municipal na quinta-feira (31) para fazer cumprir a previsão de que o reajuste caia na conta dos servidores até 20 de setembro. Já em ao menos outros 24 municípios, o piso foi sancionado e aplicado com recursos próprios, que serão repostos com o repasse federal.
O QUE DIZ OS PROJETOS?
Em uma frente, entidades trabalhistas enviam minutas de projetos de lei sobre o piso para os municípios, a fim de que as gestões incorporem as demandas da categoria quanto à carga horária e aos benefícios e gratificações.
Esses são os tópicos mais abordados pelos trabalhadores no momento. Em Cascavel, por exemplo, o projeto enviado no começo de agosto foi retirado de pauta em poucos dias, após pressão dos sindicatos. Na terça-feira (29), a Prefeitura enviou um novo texto para apreciação dos vereadores. O trâmite deve iniciar, de fato, na próxima terça (5).
O Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde no Ceará (Sindsaúde) e o Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Cascavel apontaram, por meio das redes sociais, que tópicos como a ascensão funcional e as gratificações (como adicional de insalubridade) seriam prejudicados com a primeira proposta.
Conforme Adriana Moura, diretora do Sindsaúde, o novo texto “ainda não traz o piso na sua integralidade à enfermagem, pois alguns municípios, mesmo sendo autônomos e podendo mudar para melhor a vida desses profissionais, optaram por seguir ‘ipsis litteris’ (ao pé da letra) o que trouxe o STF e a AGU”.
O Supremo decidiu que os entes públicos paguem o piso dentro dos limites dos repasses financeiros do Governo Federal e que os novos salários estejam atrelados a uma jornada de 44 horas semanais de trabalho, acima do que padrão para os servidores públicos da enfermagem.
Segundo a Corte, nesse caso, os estados e municípios devem pagar, então, os valores proporcionais à carga normalmente aplicada em cada ente, mas sempre com a 44h como referencial.
O procurador do município de Cascavel, Suiberto Fernandes, explica que, no novo projeto, a Prefeitura buscou se adequar à minuta indicada pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), adequada às condições da portaria federal e da decisão do Supremo.
"No projeto anterior, a gente estava alterando o salário-base dos enfermeiros efetivos, mas o Consems orientou que não fizesse a alteração da nossa tabela, e sim que solicitasse à Câmara a autorização para pagar a complementação do piso por meio dos repasses da União", atentou Suiberto.
Assim, o município teria mais segurança jurídica em relação à medida após o período de vigência da ajuda federal.
"Não se tem garantia de que a União vai continuar repassando esse dinheiro para os municípios. Se eu altero a minha tabela vencimental e a União deixa de repassar, o município vai ficar obrigado a pagar porque alterou a tabela vencimental e não pode reduzir. O Conasems orientou que o projeto pedisse autorização para repassar o dinheiro recebido da União aos enfermeiros, complementando os salários", completou.
O impasse também gira em torno da classificação do piso como remuneração ou não salário-base. No primeiro caso, os valores da lei federal são alcançados contando, também, as gratificações. No segundo, apenas o vencimento é reajustado.
"A complementação que eu vou pagar a ele no holerite dele, somado, vai dar o valor do piso. Então o que vai estar na tabela vencimental mais o que eu tô pedindo à Câmara para autorizar para transferir para ele, somado, vai dar o piso", disse.
Este é apenas um caso que ilustra a complexidade das discussões acerca do novo piso da enfermagem. Para o presidente do Conselho das Secretárias Municipais de Saúde do Ceará (Cosems-CE), Rilson Andrade, o momento exige cautela, já que, além das questões locais e conversas com sindicatos, a própria portaria do Ministério da Saúde apresenta inconsistências.
“Nesse momento, os municípios estão elaborando as suas leis de repasse, e isso precisa ser feito com toda a cautela que o assunto e o momento exige, tendo em vista, inclusive, as diversas atualizações de informações que o próprio ministério tem feito diariamente para que possamos casar o justo anseio da classe da enfermagem com sua real efetivação”, diz Rilson.
Tudo isso também de considerar toda uma questão de responsabilidade fiscal, com a qual os gestores devem estar atentos, aponta o chefe do Cosems-CE.
CEARÁ E FORTALEZA
O Governo do Estado e a Prefeitura de Fortaleza enviaram projetos sobre o piso da enfermagem aos Legislativos na mesma semana. Os dois entes, contudo, são alvos de críticas diferentes pela enfermagem.
O primeiro une vencimento-base com gratificações para chegar ao valor mínimo nacional. A lei federal fixa os seguintes valores:
Enfermeiros: R$ 4.750;
Técnicos de enfermagem: R$ 3.325;
Auxiliares de enfermagem e parteiras: R$ 2.375.
Conforme o Sindsaúde, esse dispositivo está no trecho do projeto que atrela as parcelas que integrarão o piso a normativos e orientações do Ministério da Saúde.
A presidente do sindicato, Marta Brandão, argumenta que a matéria não dá "ganho nenhum" para os trabalhadores, porque, no fim, o acréscimo salarial é pequeno. "Ao juntar no cálculo as gratificações, ele está deixando de cumprir o piso salarial da Enfermagem. O piso não se confunde com remuneração total, o piso é o salário-base dos trabalhadores", afirmou.
O projeto ainda atende à proporcionalidade definida pelo Supremo para os servidores com jornadas inferiores a 44h semanais, o que desagrada a categoria.
"Ele vinculou a 44 horas semanais, mas não existe essa jornada aqui no Ceará e nem em nenhum outro local do Brasil para o servidor público. E isso ainda está em debate no Supremo Tribunal Federal, porque as entidades estão entrando com embargos para questionar essa jornada de 44 horas", acrescentou.
Mas o líder do Governo Elmano na Alece, o deputado Romeu Aldigueri (PDT) justifica que o Estado está apenas tentando atender o que determina a lei federal e a decisão do STF sobre o assunto.
"O piso é para 44 horas (semanais). Se o servidor trabalha 40 horas, é proporcional às 40 horas; se o trabalhador trabalha 30 horas, é proporcional as 30 horas. É assim no Brasil todo", explica. O objetivo é encaminhar a medida para a aplicação na folha salarial de setembro, paga em outubro.
Quanto aos profissionais cooperados, que trabalham nos equipamentos do Estado numa dinâmica de terceirização, devem receber os novos salários apenas quando os recursos forem repassados integralmente pela União, diz o deputado.
"Agora, no dia 10, a Secretaria da Saúde vai mandar informações complementares para ser implementado também nas terceirizadas, nas cooperativas, porque só recebemos parte do recurso", completa.
Já em relação ao Município, a crítica à carga horária de 44h também é feita pelos trabalhadores. Ao Diário do Nordeste – ainda em agosto, ao ter acesso ao texto que seria enviado à Câmara Municipal –, Marta reforçou a articulação feita pela vinculação do piso à jornada aplicada em Fortaleza, inferior à definida pelo Supremo Tribunal Federal.
"Isso é muito ruim porque não existe jornada de 44h no serviço público, isso é uma fraude", disse.
"As entidades da enfermagem contestaram essa decisão da Prefeitura, mesmo sabendo que tem essa decisão do STF, mas que nós estamos lutando a nível nacional através das nossas entidades sindicais e do próprio Senado, que é parte na ADI (ação direta de inconstitucionalidade) e já se posicionou que vai entrar com embargos de declaração para contestar essa jornada", observou, ainda.
CORREÇÕES NA AJUDA FEDERAL
Enquanto alguns municípios correm para regularizar os pagamentos da enfermagem, outros já fizeram isso, mas ainda não receberam uma complementação efetiva do Governo Federal. É o que se observa em Cruz e em Aquiraz.
No primeiro caso, o problema é que o município sequer foi citado na portaria do Ministério da Saúde, ou seja, não recebeu nada de complementação. Mais de 200 cidades brasileiras estão em situação semelhante, afirma o presidente do Cosems-CE.
Na publicação de maio, Cruz receberia R$ 436.761,67 ao todo, em nove parcelas de R$ 48.529,07. O Diário do Nordeste tentou contato com a Prefeitura, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.
Já em Aquiraz, a lei do piso foi sancionada em maio deste ano. Com impacto estimado em R$ 350 mil reais mensais com os novos salários, o município da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), porém, recebeu apenas R$ 226 do Governo Federal na portaria revisada.
Esse valor é o total do repasse retroativo a maio, ou seja, quatro parcelas de R$ 56,5. A prestação mensal na portaria anterior, publicada em maio, era de R$ 328.743,38.
Em contato com o Ministério da Saúde, o secretário da Saúde de Aquiraz, David Faustino de Lima, foi informado que, sexta-feira (1º), seria aberta uma nova discussão sobre os valores, com novas planilhas para preenchimento pelos entes federados.
Essa é chance, segundo ele, de receber o valor necessário em setembro (em torno de R$ 330 mil mensais) e a correção do repasse retroativo.
“Isso pode impactar na prestação de serviço, até porque a gente vai ter que aumentar o aporte do recurso próprio do município para fazer essa complementação”, observou.
“Essa diferença desses R$ 350 mil acarreta que a gente vai ter que tirar de algum local e vai ter que sair do recurso próprio”, disse, afirmando, ainda, que o prefeito Bruno Gonçalves (PL) está acompanhando a situação de perto.
226
Foi o valor em reais que Aquiraz recebeu da União para pagar o piso retroativo a maio.
Para Rilson Andrade, isso não foi falha da Prefeitura. “Eu digo isso porque o município passou para mim, me mostrou como preencheu a planilha, e ele preencheu corretamente. Então a gente acredita que houve erro (do ministério) em algumas situações específicas”, afirma.
“Quando liberou a primeira planilha para a gente preencher, ele pedia para você colocar o valor do salário, da insalubridade, do adicional noturno e tinha uma coluna que dizia ‘outros’, e ali ele misturava todo e qualquer tipo de gratificação, só que eles não especificaram que gratificação seria aquela”, completa.
Esse é apenas um exemplo de como as informações estão confusas para os gestores. Outros problemas encontrados no decorrer das duas últimas semanas foram a incompatibilidade de carga horária e as pendências junto ao Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), que pesaram no rateio.
A questão em torno da jornada, especificamente para o cálculo dos repasses, é que o ministério não contabilizava aqueles profissionais com carga de trabalho superior a 79 horas semanais, ou seja, os que trabalham em duas ou mais unidades de saúde diferentes.
Normalmente, o trabalhador opta por acumular mais de uma escala de plantão – alternando vínculos entre Estado, municípios e iniciativa privada – para complementar a renda, já que, em boa parte das cidades cearenses, o salário-base é equivalente a um salário mínimo para técnicos de enfermagem, por exemplo.
Mas isso já mudou. Segundo o Fundo Nacional da Saúde (FNS), o Ministério da Saúde mudou o posicionamento neste tópico e passou a estabelecer o limite de 88 horas de jornada em vínculos distintos. Ou seja, caso haja dois contratos de 44h – jornada reconhecida pelo Supremo –, o profissional poderá receber o piso.
Quanto ao segundo ponto, os entes federados ainda não sabem detalhar que pendências seriam essas e por que foram consideradas no cálculo, já que não havia informação sobre isso na etapa de atualização de dados na plataforma InvestSUS, afirma Rilson.
Secretários de saúde de todo o País estiveram em Brasília no início da semana para tratar sobre essas e outras questões, em articulação do Conasems. A expectativa é que essas incongruências sejam corrigidas até a data dos repasses de setembro.
Fonte: Diário do Nordeste