Noutra zona de litigância, acusa o Piauí de pretender anexar uma fração do mapa de Carnaubal, justamente aquela onde ele havia fixado residência e vivia desde então, criando a filharada com a renda obtida com o bar de beira de estrada.
A hipótese de passar ao estado vizinho, no entanto, lhe provoca uma comichão. Do lado de dentro do batente, a voz levemente engrolada, ratifica o desejo. "Quero ficar no Ceará. Moro aqui, nasci aqui, não quero sair. Onde já se viu mudar a esta altura da vida?", questiona.
A indagação cala fundo no amigo, o vendedor Cícero Ribeiro dos Santos, 49. Natural de Croatá, o cearense estava de passagem, mas se interessara pelo assunto e resolvera ficar. Afinal de contas, já cumprira com parte das obrigações da jornada. Vinha de um distrito próximo, onde tinha abastecido o comércio local de peixe e frango antes de ganhar o mundo de novo em cima da moto.
Nem era meio-dia, e agora estava abancado ao lado de Raimundo. A expressão era de genuína preocupação. "Faz tempo que tem essa briga, mas essas terras sempre foram daqui", Cícero deixa escapar, acrescentando que se trata de uma área concorrida, "até Guaraciaba quer".
O cenário não é de guerra, mas o ânimo ali é beligerante. Como dois soldados que se preparassem para a batalha, Raimundo e Cícero conversam no bar no meio de uma estradinha de terra em Carnaubal, no interior cearense.
A região é duplamente conflagrada. Situada numa espécie de tríplice fronteira, faz divisa com Guaraciaba do Norte e Pedro II, no Piauí. Por onde o olhar se estende, há plantação de feijão e muita terra avulsa, num estirão que se perde no firmamento. Raimundo assegura: "A terra é disputada".
Aos 59 anos, pai de sete filhos e nascido daquele pedaço de chão, Raimundo Antônio combate em duas frentes. Numa delas, peleja com um adversário doméstico. "Aqui é Carnaubal, mas Guaraciaba quer tomar, e isso não pode acontecer", finca pé, decidido a preservar a integridade do seu território natal como quem zela pela própria casa.
Não se sabe se em tom de brincadeira, de repente vislumbra uma possibilidade que não interessa a ninguém: a de conflito aberto, como esses tantos que ele pesca às vezes na internet ou escutando o rádio no fim da tarde, estirado na rede.
"Se tiver guerra, é fácil de resolver", diz pensativo a Raimundo, antevendo talvez as falanges de parte a parte se batendo umas contra as outras por aquele recorte precioso de Carnaubal. Cícero leva a sério a imagem.
"A terra aqui dá mais coisa, é mais fácil, tem mais riqueza, é tomate, é todo tipo de legume. Lá no Piauí é mais seco, as terras são assim queimadas, não ajudam", inventaria as motivações para o estado querelante estar de olho nessas localidades da Serra Grande.
E Guaraciaba? Sobre isso, Cícero admite não ter tanta informação. Mas sustenta que o município também nutre secretamente essa vocação expansiva que os piauienses vêm demonstrando ao mirar na geografia da Ibiapaba.
Longe uns bons quilômetros dali, mas ainda em Carnaubal, Manuel Vieira, 80 anos, assiste a essa escalada bélica sentado numa cadeira de balanço no alpendre de casa, de frente para uma árvore frondosa cuja copa havia acabado de florir, produzindo um espetáculo de cores.
Já experiente, as mãos com sulcos talhados pela lida com plantação e bicho desde menino, Manuel confirma os rumores em torno da queda de braço entre as duas cidades cearenses. Ele, contudo, garante conhecer exatamente onde começa um e termina o outro. "Aqui o povo diz que é Guaraciaba, mas é tudo Carnaubal", relata, complementando que "todo mundo concorda que é melhor continuar no Ceará, de qualquer maneira".
o Povo