Placa de sinalização de dividas estaduais na BR 404 entre o município cearense de Poranga e Pedro II no Piauí (Foto: Aurélio Alves) |
Da praia mais calma em Icapuí, extremo leste do Ceará, às movimentadas ruas da região do Cariri, no sul do Estado, fala-se, quase em tom de contação de lendas, da história que o Ceará teria trocado parte do litoral para ter Crateús. O objetivo era que o estado vizinho, Piauí, tivesse acesso ao mar. Passados quase 150 anos ainda pairam dúvidas sobre a costura da anexação dos territórios. Desde 2011, o caso virou uma disputa no Supremo Tribunal Federal (STF), onde tramita a ação cível originária (ACO) 1.831, que pode custar parte do território cearense.
O Piauí requer três áreas de litígio que, somadas, correspondem a aproximadamente 3 mil quilômetros quadrados de território. A área em disputa abrange 13 municípios do Ceará, em diferentes proporções. Três deles são os mais antigos da lista e deram origem a todos os outros: Viçosa do Ceará (1759), Granja (1776) e Guaraciaba do Norte (1791).
Há 13 municípios envolvidos do lado cearense: Carnaubal, Crateús, Croatá, Granja, Guaraciaba do Norte, Ibiapina, Ipaporanga, Ipueiras, Poranga, São Benedito, Tianguá, Ubajara e Viçosa do Ceará.
Cada município tem sua área questionada em certa porcentagem, sendo Poranga o que mais seria atingido em uma eventual mudança, com com cerca de 66,3% da dimensão sob questionamento.
Território dos municípios envolvidos
Mapa com indicação dos elementos geográficos citados no decreto imperial de 1880. Na linha verde, a interpretação do Piauí. Na azul, a do Ceará (Foto: Reprodução/Ipece) |
A ação inclui ainda nove municípios do lado do Piauí, são eles: Luís Correia, Cocal, Cocal dos Alves, Piracuruca, São João da Fronteira, Pedro II, Buriti dos Montes, Domingos Mourão e São Miguel do Tapuio. O fato é outro ponto de divergência, já que a Procuradoria Geral do Ceará (PGE-CE) questiona o fato do estado vizinho reivindicar áreas que já se encontram sob sua administração, de acordo com a demarcação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Segundo a Procuradoria Geral do Piauí (PGE-PI), isso ocorre porque ainda se aguarda o relatório que o Exército está executando, com previsão de ser entregue em maio deste ano.
Uma polêmica que atravessa séculos
Comparativo da representação cartográfica da divisa entre o Ceará e o Piauí ao longo dos anos (Foto: Reprodução/ IBGE/Via PGE-CE) |
Para entender como começou o impasse na área de divisa entre Ceará e Piauí, é preciso fazer um mergulho na história, indo até 300 anos atrás, nos tempos do Brasil colônia. O Brasil português se dividia em dois assim chamados estados: Estado do Brasil e Estado do Maranhão e Grão-Pará.
O Ceará havia sido parte deste último, mas, desde 1656 era parte do Estado do Brasil. O Piauí integrava o Estado do Maranhão e Grão-Pará e reivindicou terras da Missão da Ibiapaba, morada de indígenas da nação Tabajara, considerados pertencentes ao Ceará. Em 1720, o rei de Portugal, dom João V, expediu carta régia pela qual toda a Serra da Ibiapaba era reconhecida como parte da nação Tabajara na capitania do Ceará.
No século seguinte, o Piauí reivindicou a posse da Freguesia de Amarração, então parte do Ceará. Esse território litorâneo corresponde aos atuais municípios piauienses de Luís Correia e Cajueiro da Praia.
Na visão dos piauienses, o território, na verdade, sempre foi do estado, seja por características culturais como de desenvolvimento. É o que contam os doutores em História, Marcus Pierre de Carvalho Baptista e Francisco de Assis de Sousa Nascimento, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), em artigo com a doutora em Geografia, Elisabeth Mary de Carvalho Baptista.
Conforme o grupo, uma narrativa comum da historiografia piauiense é que o povoamento da área está relacionado à presença de pescadores, com uma anexação pela província do Ceará na primeira metade do século XIX em função da atuação de padres pela freguesia de Granja.
Em 1870, houve a elevação do povoado de Amarração a vila por meio de leis provinciais do Ceará e, consequentemente, a permuta realizada entre Piauí e Ceará, pelo decreto imperial 3.012, de 22 de outubro de 1880, pelo qual Amarração foi transferida para o Piauí, em troca da comarca de Príncipe Imperial — atuais municípios cearenses de Crateús e Independência — incorporados ao Ceará.
Os autores piauienses destacam que a região de Amarração sempre foi alvo de dúvidas e conflitos entre os governos dos dois estados. Entre os pontos de divergência, a nomeação de funcionários dos portos e pessoas que transitavam entre as regiões para votar. Sobre esta questão, estudiosos indicam que, na segunda metade do século XIX, Amarração tornou-se parte de uma estratégia do governo provincial para o desenvolvimento piauiense.
Esta estratégia se pautava em três aspectos: desenvolvimento das vias fluviais, especialmente o rio Parnaíba, para escoamento da produção da província; "retomada" de Amarração, consequentemente do atracadouro, e construção de um porto na região, construção da malha ferroviária até o litoral, também com o intuito de facilitar o comércio dos produtos piauienses.
"Essa estratégia pautava-se na necessidade da resolução do litígio entre Piauí e Ceará no que se refere ao litoral piauiense, mais especificamente em retomar/reanexar Amarração ao território piauiense, que se efetiva em 1880 com a permuta desta última por Príncipe Imperial e Independência", diz trecho do artigo.
Interpretações do decreto causam a polêmica
Vista parcial do Parque Nacional de Ubajara (Foto: Aurélio Alves) |
O decreto 3.012, do imperador dom Pedro II, do ano de 1880, oficializou a troca de territórios entre Ceará e Piauí, motivo de controvérsia 144 anos depois. O Ceará cedeu Amarração ao Piauí. Em troca, recebeu a Comarca de Príncipe Imperial, até então território piauiense. Príncipe Imperial corresponde aos atuais municípios de Crateús e Independência. Em vez de encerrar a disputa, mais dúvidas foram criadas.
A troca envolveu então uma parcela do sertão do Piauí para o Ceará, em troca do litoral do Ceará para o Piauí. Entre esses dois territórios, fica a Serra da Ibiapaba. Como fica a situação dela? As diferentes respostas a essa pergunta explicam o litígio secular.
Argumentação cearense
Para o Governo do Ceará, com base na análise de mapas e decretos históricos, o decreto imperial tratou apenas dos territórios trocados, sem envolver toda a divisa entre Ceará e Piauí. Permaneceu assim a Serra da Ibiapaba inteiramente no Ceará, com a divisa no sopé ocidental da serra, a parte de baixo, do lado oeste, como era desde o século XVIII, quando havia os antigos Estado do Brasil e Estado do Maranhão e Grão-Pará. São mostrados diversos mapas feitos ao longo de séculos que mostram que a serra sempre foi parte do Ceará.
Para a procuradoria cearense, o divisor de águas (vertentes orientais e ocidentais) jamais deveriam ser utilizados na região da Serra da Ibiapaba, “território esse que sempre pertenceu ao estado do Ceará”. Os divisores de águas (ou interflúvios) são linhas divisórias localizadas nas áreas mais elevadas do relevo, no encontro de planos que marcam a mudança de sentido no escoamento das águas da rede hidrográfica.
Houve à época um debate na Câmara dos Deputados e no Senado para corrigir textualmente o decreto imperial para deixar claro que os limites traçados no dito artigo dizem respeito somente ao território da comarca de Príncipe Imperial, anexada ao Ceará, e não ao território das duas províncias como um todo.
Argumentação do Piauí
A argumentação do Piauí, no entanto, versa sobre o entendimento de que a divisão deve acontecer no pico mais alto da serra, o que eles consideram ser o divisor de águas. “Como se trata de uma serra, um marco divisor sempre é um pico das serras que se fixam os limite, então o ponto mais alto da serra aquele para o qual que divide. O Ceará argumenta que seria o marco o sopé, a parte de baixo da serra, que a serra estaria na sua integridade do ceará, mas essa tese foge até da própria redação do decreto”, explica o procurador-chefe da Procuradoria do Patrimônio Imobiliário da PGE-PI, Livio Carvalho Bonfim.
Conforme o STF, na ação, o Estado do Piauí argumenta ainda que as áreas indivisas se tornaram, com o passar do tempo, “terras sem lei”, pois não se pode punir os crimes mais diversos ali praticados em razão da regra geral de fixação da competência pelo lugar da infração prevista no Código de Processo Penal (CPP). Pelo mesmo motivo, não se cobram tributos devidos ao Erário e este, por sua vez, não se faz presente na construção e na manutenção de escolas, postos de saúde e estradas.
"Doação" ao Ceará
Açude Jaburu em Tianguá (Foto: Aurélio Alves) |
O procurador-chefe da Procuradoria do Patrimônio Imobiliário da PGE-PI, Livio Carvalho Bonfim, defende que o território de acesso ao litoral sempre foi piauiense. Segundo ele, a cessão de Crateús e Independência foi uma doação. "O território do Ceará, aquela região que no princípio que a gente, com base no mapa, podemos afirmar claramente que se tratava de uma área do Piauí. Em decorrência disso houve a incorporação de fato do Ceará, mas se você olhar os mapas mais antigos, o Piauí realmente tinha esse acesso ao litoral".
Ele segue defendendo que a troca seria, na verdade, uma "doação". "Não foi bem uma troca. Acabou sendo uma espécie de doação que o Estado do Piauí acabou fazendo para o do Ceará".
Já a Procuradoria Geral do Estado do Ceará (PGE-CE) reforça o que consta no primeiro Censo Demográfico ocorrido no Brasil, de 1872, sendo recenseada para o Ceará a população residente em Amarração, e para o Piauí a população da comarca de Príncipe Imperial, "seguindo a posse de jurisdição histórica do território e o pertencimento da população".
Tentativa de acordo entre Ceará e Piauí falhou
Estradas de areia em Ibiapina (Foto: Aurélio Alves) |
Houve uma tentativa de evitar o percalço jurídico no litígio entre Piauí e Ceará. Os estados passaram por uma tentativa de mediação. Em 2012, a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF) da Advocacia Geral da União (AGU) pediu ao IBGE que coordenasse um trabalho técnico para definir uma metodologia, em conjunto com os dois estados, que possibilitasse o reconhecimento e a identificação do traçado da divisa entre o Piauí e o Ceará.
Em comum acordo, foi demarcada uma área piloto de aproximadamente 30 quilômetros quadrados, entre os municípios de Poranga/CE e Pedro II/PI. Técnicos de ambos os estados participaram.
O trabalho chegou a uma proposta de a divisa entre Pedro II e Poranga ser estabelecida em comum acordo entre os estados, numa combinação entre uma linha sinuosa da divisão das águas, dados dos levantamentos fundiários e marcos de pedra na região, devendo sempre prevalecer os limites da posse tradicional como uma situação consolidada.
O Piauí participou da definição da metodologia, mas não aceitou os resultados do trabalho técnico e a tentativa de conciliação foi encerrada. assim, o processo teve continuidade no Supremo.