No quadrilátero conhecido como Alto da Boa Vista, mais precisamente na Rua Aldenísio Uchôa Amorim (Rua Boa Vista) há uma relação histórica com as oficinas mecânicas, profissionais mecânicos e lojas de peças, cuja aglomeração remota final da década de 1950
Não seria redundante o título da reportagem se não fosse verdadeira a afirmação de que é de Iguatu o título de maior polo loja-mecânica da região. Isso se dá em razão do número de oficinas, lojas de peças e profissionais, que estão distribuídos nos quatro cantos da cidade e em bairros distintos.
Naturalmente a origem dessa demanda está numa área que ficou conhecida como a ‘Rua das Oficinas’, no lugar identificado como ‘Alto da Boa Vista’, entre os bairros Alto do Jucá, Cocobó, Santo Antônio e o Centro comercial. Neste quadrilátero há uma relação direta das residências e estabelecimentos comerciais com oficinas mecânicas, lojas de peças e profissionais mecânicos, cuja junção no mesmo endereço remete aos anos de 1950.
Na época o ‘Alto’ era um lugar diferente, poucas casas e considerada uma ZBM, com a existência dos cabarés, entre esses o famoso cabaré Coqueiro. Época dos crimes passionais, em que os homens disputavam na faca ou à bala as paixões ardentes das mulheres, que geralmente nasciam nas mesas de cabaré, regadas a espuma de cerveja, cigarro e perfume. Os homicídios que ainda não eram qualificados, ocorriam também com as mulheres que eram mortas por seus próprios amantes, embriagados de ciúmes ou de paixão.
Naqueles anos não muito distantes era para essa área da cidade que se destinavam praticamente todos os serviços mecânicos de carros, porque lá estavam também as oficinas mecânicas e concentrados os mecânicos mais experientes. Era o tempo em que o profissional era mecânico geral e fazia tudo: mecânica, funilaria, elétrica, pintura, sem distinção de marca. Por conta disto, naturalmente ali foram chegando as lojas de peças.
Hoje os serviços especializados para carros e motos estão espalhados por toda a cidade e também segmentados, pois existe um especialista para cada parte do veículo. Isso justifica também o título de polo-mecânico do Centro-Sul, embora a maior concentração de oficinas, lojas e profissionais ainda seja no ‘Alto’, no quadrilátero entre as ruas Engenheiro Wilton Correia Lima, (antiga 21 de abril, no Prado), Dário Rabelo, (Santo Antônio), Joaquim Ailton Alexandre (antiga Rua do Cruzeiro), Alto do Jucá/Cocobó.
Especialistas
Com a evolução da indústria automobilística, e a chegada ao mercado dos carros automáticos, os elétricos, com menos ferro, mais plástico e fibra, o que os torna mais leves, com motores mais modernos, sofisticados e econômicos, a gama de profissionais mecânicos também precisou se modernizar. O profissional ‘faz tudo’ não desapareceu, ele existe, mas com outro perfil, mais atualizado com a evolução do mercado tecnológico.
Na Rua Aldenísio Uchôa Amorim (Boa Vista), a empresa JM é uma loja de peças com oficina mecânica. O dono do negócio é o Júnior Araújo, 44, com 30 anos no segmento. A loja dele gera quatro empregos diretos. É lá onde estão também outros dois mecânicos mais jovens: Samuel Dantas, 26, há 8 anos na profissão, se especializando em mecânica geral, parte elétrica e eletrônica, e Werley Santos, 26, há 3 anos se dedicando às partes de mecânica, suspensão e freios. Júnior afirma que a área de mecânica de carros foi uma paixão da adolescência, já fez vários cursos de capacitação para se atualizar e garante que é preciso estar atento porque atualmente o mercado se moderniza muito rapidamente e quem não se qualificar vai ficando para trás.
Francival Neves da Silva, conhecido popularmente como ‘Beca das fibras’, está no segmento de restauração de carros há 25 anos. Começou como empregado, hoje tem sua própria oficina, um espaço de pouco mais de 24 metros quadrados na Rua Boa Vista, espaço suficiente para ele aplicar suas habilidades em serviços que envolvem fibra e pintura. Ele recupera peças do carro de fibra danificados e entrega ao cliente já pintado. Beca faz parte de outro leque de profissionais: os que se especializaram em serviços exclusivos e segmentados dos carros, uma tendência natural do mercado automobilístico atual. Os mecânicos em sua maioria estão divididos por área específica. Existem aqueles que cuidam só de funilaria (lataria e carroceria), outros, só de elétrica, mecânico só de motor, os que lidam somente com caixa de marcha e os especialistas em portas. Acrescente neste leque os especialistas em suspensão, ar condicionado e injeção eletrônica.
Na última década o Alto da Boa Vista também atraiu investidores. Israel Araújo e Eulânia Viana formam um jovem casal de empresários. Há 9 anos eles se instalaram na Rua Aldenísio Uchôa com um negócio promissor, uma retífica de motores das linhas leve e pesada. A demanda é grande e o atendimento é feito com agendamento. No mesmo espaço funciona a loja de peças e a retífica. Intensa é a movimentação de entrada e saída de clientes para receber e entregar serviços.
A chegada da Retifica Paulista ao Alto da Boa Vista, referência na cidade em oficinas mecânicas e lojas de peças, não foi por acaso. A empresa gera cerca de 8 empregos diretos, cada emprego, uma família.
Mulher mecânica
Quando o casal procurava um local para instalar a empresa, a procura pelos serviços de restauração de motores falou mais alto, então eles concordaram que ali era o lugar ideal. E assim como as oficinas e casas de peças se espalharam pela cidade, o Alto da Boa Vista, pelas suas características naturais, também exerce forte influência na hora de atrair novas empresas para ali se instalarem.
Eulânia se identifica tanto com o segmento que por diversas vezes sai do administrativo e vai ajudar na oficina de recuperação de motores. Ela se prepara para se tornar a primeira mulher mecânica de Iguatu. Mas só quer ostentar o título quando fechar o curso preparatório. “Estou me preparando. Já consigo auxiliar os mecânicos e em breve serei uma mulher mecânica”, afirmou. Israel, como empreendedor e esposo, dá todo apoio para ver a parceira na vida e nos negócios se realizar profissionalmente.
Veterano
Um veterano em mecânica e trabalhando no Alto há 50 anos é José Glaudo Gouveia Maciel, ‘Dedé de Jaime’. Dedé já foi aquele mecânico ‘faz tudo’, mas hoje se dedica a restaurar ‘alternadores’ e ‘motores de partida’ (arranco), que são duas engrenagens vitais da parte elétrica do veículo. Vítima de um AVC – acidente vascular cerebral, Dedé de Jaime desacelerou. Ele disse que cuidar da saúde agora é sua prioridade, mas continua trabalhando, atendendo a clientela que vai até a oficina dele e ainda recebe demandas terceirizadas por outras. Na oficina dele são cinco pessoas trabalhando incluindo 4 auxiliares que se revezam nos atendimentos ao público.
Dedé trabalhava com seu pai, Jaime Gouveia Maciel (saudosa memória) até que resolveu trabalhar por conta própria e lá se vão cinco décadas no mesmo endereço. O polo-mecânico para ele é uma referência. “Nesses anos todos já vivi mais tempo aqui do que em casa, mas é aqui onde me instalei e de onde tiro o sustento da família, sou muito grato a Deus por tudo”, frisou.
Bem no meio do Alto, num recuado da rua Boa Vista, José Castro Andrade, 55, é um veterano torneiro mecânico. Já acumula 40 anos de profissão, começou aos 15 anos. A oficina dele é um museu, com bancada e tornos originais, engrenagens de ferro que nem são mais fabricadas, mas são essenciais para a execução dos serviços que ele presta aos clientes.
Araújo é outra empresa que se instalou no Alto. Administrada pelo casal Antônio Araújo de Carvalho e Edvania Batista Laurindo, chegou ao Alto há 12 anos. A ideia de se instalar por lá é muito óbvia: a concentração de profissionais e oficinas mecânicas. Começaram com loja de peças, o negócio deu tão certo que foi ampliado para oficina, depois para serviço de guincho e já evolui para máquinas pesadas. Na oficina, três mecânicos reúnem experiência e juventude. Francisco Gilmar do Nascimento Róseo, 61, ‘Caboré’, um veterano com 35 anos de estrada, especialista em motores a diesel. Sua tarefa é receber os motores de veículos pesados (caminhões, caçambas, ônibus, máquinas) com defeito e devolver funcionando. Jefferson Alvino de Souza, 27, é um jovem mecânico que começou aos 13 anos. Orgulha-se de trabalhar ao lado de profissionais gabaritados, reconhecidos por suas habilidades, com quem ele admite aprender muito. Jefferson está bem assistido, pois além do parceiro Caboré, outro mecânico experiente está na retaguarda, Francisco Gonçalves, 51, o ‘Binha’, desde os 7 anos de idade vive dentro de oficina mecânica. É filho de pai mecânico, o senhor Amadeu, se especializou em suspensão, motor, embreagem e diferencial, um profissional com muita bagagem para transmitir aos mais jovens.
Na rua e no sol
As oficinas e os mecânicos estão muito próximos uns dos outros. O dia inteiro eles trocam informações, serviços, indicam uns para os outros e se revezam para atender a todas as demandas que chegam. É comum encontrar pelas ruas do quadrilátero mecânico com peça de carro nas mãos procurando reposição ou recuperação.
A Rua Trajano de Medeiros é uma artéria que cruza a Boa Vista. Naquela urbe, os mecânicos trabalham ali mesmo no passeio público, ao relento sem se importarem muito com o sol, a poeira ou o vai e vem de pessoas e carros. É como se fosse uma grande oficina, com veículos estacionados em todas as direções e os mecânicos trabalhando. Naldo Marques da Silva, 55, tem uma história parecida com outros mecânicos. A oficina dele fica na Trajano de Medeiros, mas o mecânico fica mais tempo na rua fazendo seus consertos. Especialista em carros e máquinas pesados, caixa de marcha, motores, eixo de roda, suspensão, Naldo segue os passos do tio José Preto, com quem aprendeu a profissão e hoje se orgulha do que sabe fazer para restaurar, por exemplo, o motor, caixa de marcha, diferencial de um trator, um caminhão, uma caminhonete.
Há cinco anos instalado no bairro, Lucas Alves, 27, acaba de submeter a empresa dele a uma metamorfose. Transformou o que era de funilaria e pintura para estética. Agora ele só faz polimento, cristalização, vitrificação (para proteção da pintura) e revitalização dos faróis. Com isso, o trabalho ficou mais leve e rápido. Trabalhando apenas com um auxiliar, Kelyson, ele consegue recuperar até três carros por dia. Ganhou mais tempo para curtir a família e o filho pequeno. “Minha jornada era exaustiva, muitas vezes eu chegava em casa, meu filho já estava dormindo e no outro dia eu saí muito cedo novamente e ele ainda estava dormindo, agora isso mudou”, frisou. Filho de mecânico especialista em pintura automotiva Joãozinho Alves, com a modernização da loja, Lucas produz mais e alcança outro público, também consumidor de seus serviços.
Lenda
Franciné é um dos mecânicos mais experientes do Alto da Boa Vista. Está lá desde 1961, mesma época dos cabarés de ‘Pedrinhas’, ‘Coqueiros’, lugares que eram censurados pela sociedade, mas acolhiam homens que se aventuravam fartamente com as mulheres, enquanto os mecânicos que já começavam a povoar o Alto faziam os serviços mecânicos de seus carros. Aos 83 anos, é uma lenda do setor. Trabalha num velho galpão, num recuado da Rua Aldenísio Uchôa, hoje especialista em retífica de motores de motocicletas e automóveis. Ele lembra que teve dois mestres em mecânica, que para ele são referência até hoje, Inácio (mecânico geral) e Dionísio (torneiro mecânico), ambos já falecidos.
Influenciado pelo pai, que também era mecânico geral, Franciné começou por volta de 1955. Para se aperfeiçoar na restauração de motores de máquinas agrícolas, fez cursos de capacitação em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Foi numa época que prestava serviços para empresas de Iguatu que trabalhavam com os equipamentos.
Na década de 1961, se instalou no Alto da Boa Vista onde permanece até hoje. O começo para ele foi trabalhando na montagem de engenhos de cana-de-açúcar. Os proprietários compravam as ‘engenhocas’ de ferro, carretas, moenda, prensa e base, de um fornecedor de Fortaleza e levavam para Franciné montar, trabalho que ele também fazia com precisão e deixava a estrutura pronta para extrair o caldo da cana nas animadas ‘moagens de cana’, pelas comunidades rurais, que inclusive Franciné visitava algumas para fazer manutenção nos engenhos.
Desde que se dedica a recuperar motores, Franciné usa uma máquina adaptada com medidas milimétricas para restaurar a peça e devolver em perfeito estado de funcionamento. O trabalho que ele faz manipulando a máquina pode ser comparado a um bisturi eletrônico operado por um robô num procedimento cirúrgico com uma incisão tão precisa que praticamente não há sequela nenhuma. Cortes perfeitos para que a peça funcione com o mesmo desempenho e força de quando saiu da fábrica. Cada cilindro que ele recupera anota as medidas num caderno, pois as medidas da máquina fabricada pelos americanos há mais de cinco décadas são calculadas em polegadas e o próprio Franciné converte para milímetro, ou seja, ao restaurar um motor de uma motocicleta 125 cilindradas, se chegar um moto de mesma referência e marca, ele não precisará calcular novamente, por isso a importância de anotar. De vez em quando o experiente mecânico recorre ao manual impresso da máquina, onde estão as gravuras e medidas com as instruções do uso.
Aos 83 anos e há mais de 55 anos de dedicação à profissão de mecânico geral, Franciné já dá sinais de ‘jogar a toalha’ e parar as atividades, embora admita que o trabalho que desempenha diariamente em jornadas, geralmente das 6h da manhã às 15h, funcionam como um bálsamo, uma terapia que ajuda a afugentar dores crônicas ou qualquer outra doença oportunista que geralmente chega com a idade. “O que faço aqui para mim é como uma terapia, não sinto nada, dor nenhuma, tenho muita saúde, graças a Deus”, frisou.
Associativismo
Iguatu é uma das cidades do interior do Ceará que concentra o maior número de lojas de peças, sucatas, oficinas e profissionais mecânicos. Mas do ponto de vista organizacional não estão agregados a nenhum sindicato ou associação. Os profissionais reconhecem a importância de estarem juntos para galgarem maiores conquistas, contudo nunca se mobilizaram com este fim. Tradicionalmente e historicamente sempre trabalharam individualmente, cada um por si, sem pensar na formação de uma entidade associativa que lutasse e defendesse os interesses de uma categoria e não de apenas um, individualmente. Apesar da força que eles têm, da importância de sua mão de obra para a sociedade, nunca foi criado o ‘Dia do Mecânico’, não há Lei Municipal instituindo esta data, nem nunca receberam homenagem, como reconhecimento pelo seu trabalho. É uma categoria esquecida, só lembrada na hora da necessidade.
Jornal a Praça